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A última hora


Luisa Garbazza

Bom Despacho – MG

https://luisagarbazza.blogspot.com


O velho relógio da sala de jantar tocou quatro vezes. O filho acabara de ligar:

– Mãe! Me faz um favor? Coloca minhas coisas nas malas aí pra mim. Consegui uma carona. Vou economizar a passagem. Sairemos às dezessete horas.

Um sobressalto forçou-a a encarar a realidade – fato que vinha evitando. Tinha apenas uma hora. Não havia mais tempo.

Encaminhou-se para o quarto do filho. Malas amontoadas em um canto. Em cima da cama, montes de roupas e outros pertences. Abriu o armário. Completamente vazio. Nada nas gavetas. Tudo estava ali, à frente de seus olhos.

Jonas, rapaz bonito, inteligente, educado, vinte anos. Vivia apenas com Lúcia, sua mãe, desde que o pai os abandonara há dez anos. Lúcia esquecera a vida, os amores, os prazeres do mundo e se dedicara exclusivamente ao filho.

Há dois meses, o filho decidiu partir. Surgira uma oportunidade para estudar em uma universidade federal para o curso que ele tanto queria. Porém a cidade era bem distante. Não foi nada fácil falar com a mãe sobre esse assunto:

– Mãe, preciso ir! É o meu sonho fazer Medicina. A senhora sabe o que isso significa? Quem sabe se terei outra oportunidade como essa? É a chance que eu tanto pedi a Deus. A senhora consegue entender?

– Entendo, filho!

– Então? O tempo há de passar rapidinho. Logo estaremos juntos novamente.

Lúcia ouvia o filho sem prestar muita atenção às palavras. Como doem as separações! O coração reclamava a ausência do filho antes mesmo de ele partir. Como haveria de ser?

Matrícula feita. Lúcia tentou manter a dignidade a todo custo. Enxugava o pranto, arrumava-se bem e ajudava o filho a se organizar. Ainda faltavam dois dias para a despedida. De repente, aquele telefonema, que a pegou de surpresa. Tinha apenas uma hora para acondicionar tudo e despedir-se do filho.

Pegou logo a mala maior para organizar as roupas. Foi colocando uma a uma para não ficarem amarrotadas. Ao colocar uma blusa de moletom azul, a primeira lágrima: lembrou-se de uma situação semelhante, há vinte anos. A noite estava começando quando Jonas avisou que queria nascer. Cuidadosamente, peça por peça, arrumou a mala com a roupinha do filho e foi levada pelo marido à maternidade. As lágrimas também vieram naquele dia, porém foram de uma alegria imensa, sentida do fundo da alma. Estava prestes a ver o rosto de seu filho, a quem já amava e por quem esperava ansiosamente. Sua primeira roupinha era azul.

Lúcia deu um suspiro profundo e continuou a tarefa: meias, toalhas, roupas íntimas... As lentes de sua memória registraram um lindo bebê na banheira, apreciando a refrescância de um banho morno. Aos poucos, o banho já era no chuveiro. A mãe, sempre por perto, auxiliando no que fosse preciso. Até que a porta do banheiro se fechou. O filho “adolescera”.

Disfarçou as lágrimas e pegou uma caixa para guardar os livros.

– Deixe alguns livros aqui, filho! É muito pesado! – argumentou a mãe.

– Quero levar todos, mãe. São livros importantes. Tenho muito a aprender.

Outra lágrima caiu. Molhou a capa de um dos livros. Lúcia relembrou o primeiro dia de aula de Jonas. O pequeno dera muito trabalho: chorou bastante ao se separar da mãe. Ela se fez de durona. Deixou-o na sala de aula e virou as costas. Ao longe, ainda ouviu um choro suplicante. Juntos venceram aquela batalha. Agora ia ganhar novos horizontes. Ela sabia disso. Mas precisava ser tão longe de casa? Fechou a caixa.

Sem que ela percebesse, havia caído uns papéis de dentro de um dos livros. Recolheu-os e, no meio deles, havia uma foto: o filho todo vestido de branco. Foto da sua Primeira Eucaristia. Boas recordações. Deixou os devaneios e foi buscar uma pequena malinha para colocar seus pertences pessoais: óculos, lâmina de barbear, cortador de unhas, desodorante, pente... Ao guardar um vidro de perfume, lembrou-se das confidências do filho. Ela se lembrava de todas. Especialmente do dia em que ele chegou todo emocionado, abraçou-a e segredou: "Mãe! Eu beijei a Clarinha." Disse aquilo com tanta ternura na voz! A mãe não soube o que falar, mas ofereceu-lhe o carinho do abraço e a cumplicidade do olhar.

Chegou a vez de guardar os calçados. Voltou no tempo e viu Jonas dando seus primeiros passinhos. Primeiramente, segurando em suas mãos; depois, ensaiou alguns passos. Passada a ansiedade, percebeu que ele precisava de liberdade. Afastou um pouco. Logo o espaço ficara pequeno para suas aventuras. Agora o filho ia morar muito longe. A mãe tinha que pensar em tudo. Buscou uma caixinha para montar uma farmacinha: remédios para dor, febre, enjoo, alguns curativos, água boricada... Vieram lembranças tristes. Vislumbrou o filho em um leito de hospital, entre a vida e a morte, e o pânico alarmante de que alguma coisa mais grave acontecesse com ele. Muito pranto e preces antecederam pequenos sinais de melhora. Daí para frente, Jonas foi, gradativamente, recuperando a saúde.

A maioria das coisas já haviam sido guardadas. Lúcia deu uma rápida olhada no relógio. Faltavam apenas quinze minutos para o filho chegar. Pegou rapidamente um envelope para guardar os documentos dele. Todos, desde o cartão de vacinas. Ouviu o barulho do portão. Olhou o relógio e percebeu que o tempo havia se esgotado. Coração acelerou dentro do peito. A porta abriu-se e Lúcia escutou aquela voz amada dizendo a palavra tantas e tantas vezes ouvida:

– Mãe!

– Aqui no quarto, filho!

Quando o filho apareceu na porta, Lúcia olhou para ele como se não o visse há muito tempo. Aquela hora fora assustadoramente arrastada. Pulou no pescoço do filho e, num abraço apertado, mostrou-lhe todo o seu amor e absorveu todas as lembranças revividas durante essa última hora. O filho iria mesmo embora. E a hora havia chegado.

Em instantes, o amigo estacionou o carro em sua porta: momento da despedida. A mãe já havia repetido todos os conselhos que lhe dera nos últimos dias. Jonas a abraçou por alguns minutos. Soltou devagar e segurou suas mãos. Lançou-lhe um olhar demorado. Um beijo selou o adeus. Em seguida, Jonas entrou no carro e se ajeitou. Quando o carro se deslocou, Lúcia acenou freneticamente. Em poucos segundos já estavam longe dos seus olhos. Ela ficou parada ali por um longo tempo. Depois, abriu o portão. Fechou-o atrás de si e atravessou o jardim. Subiu a pequena escada, cruzou a varanda e abriu a porta. Dentro de casa já estava bem escuro, mas não quis acender a luz. Fechou a porta, e a escuridão ficou ainda maior. Conservou a luz apagada e foi sentar-se no sofá da sala. Em seu coração, naquele momento, não havia nenhuma possibilidade de luz. Apenas trevas.

 
 
 

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Bom dia, navegantes. Informamos que, por motivos pessoais e profissionais, descontinuaremos a revista Mar de Lá a partir de fevereiro....

 
 
 

1 Comment


Luisa Garbazza
Luisa Garbazza
Apr 16, 2021

Obrigada, "Revista Traços, pela publicação do meu conto. Fiquei muito feliz e sinto-me lisonjeada por ter figurado entre os autores publicados. Meu sincero agradecimento.

Abraço. Luisa Garbazza

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