Roberta Ramos
Sintra - Portugal
Argamassa: cimento, areia, água e cal. Os operários parecem robôs. Ou zumbis. Automaticamente besuntam os tijolos num ritmo constante. Ele para um momento, olha para as mãos e observa as rachaduras. Já sangraram, não deviam incomodar mais. Mas a dor lancinante volta.
A voz anasalada do mestre de obras anuncia:
- Hora extra hoje! Tá tudo atrasado, parar com essa moleza e acelerar isso aí.
Ferro: pregos, vergalhões. Martelos brutos avançam sobre a estrutura, os zumbidos metálicos atordoam. Cada batida perfura seus tímpanos, cada chapa de aço cortada zune até o fundo do cérebro. Tampa os ouvidos, mas não adianta. Vira-se e vê, ao fundo, monstros que o observam com desprezo, os faróis como olhos arregalados: a retroescavadeira, o caminhão-caçamba, o rolo compactador. Sabe que estão de tocaia, se vacilar, será triturado.
Pedra-brita, granito. Os pedacinhos moídos que vão se misturar na betoneira. E em seus pulmões. Fica inerte a observar o misturador gigante que vai envolvendo tudo, a massa que começa a escorrer. Pega uma pá e começa a emassar as trincas das mãos, uma, duas demãos, precisa esconder a dor.
Olha para cima, para aquela imensidão, e fica tonto. Vergonha de si mesmo. É apenas uma formiga. Todos eles são. Esmagados a todo momento, na aflição diária de tentar sobreviver.
A sirene grita. Senta para descansar, a respiração entrecortada. Os pés pendurados no ar. Mais dez a seu lado, equilibrando-se na viga. Ele é o da ponta. Abre a marmita e engole aquilo como se fosse vidro. Todos mastigam o que há, de bom humor. O aroma que sai das comidas besuntadas e aquela alegria imbecil o enojam. São um nada, ninguém jamais saberá que foram eles que ergueram aquele prédio. Virão decoradores, virão agentes imobiliários, virão famílias lindas e abastadas, as crianças louras de bochechas coradas que olharão pela janela de vidro duplo, exatamente para aquela mesma vista, e não terão ideia de que ele ali esteve.
Cospe, na esperança de que esse escarro vindo dos pulmões acimentados grude na viga, evapore e um dia caia, condensado, no carpete luxuoso do apartamento que ali existirá. No carpete que ele nunca pisará com os sapatos imundos.
Ele, que sempre subiu a construção como se fosse máquina ergueu no patamar quatro paredes sólidas os olhos embotados de cimento e lágrima tijolo com tijolo num desenho mágico desceu a construção como se fosse único ergueu no patamar quatro paredes flácidas os olhos embotados de cimento e tráfego bebeu e soluçou como se fosse um náufrago.
Náufrago. Basta um passo para voar no ar como se fosse um pássaro. Para se misturar à argamassa cruel e não sentir mais nada.
A sirene grita novamente. E ele cai.
Em si.
Pega o pagamento da hora extra e diz ao mestre de obras:
- Deus lhe pague.
Inspirado na foto: Lunch atop of a skyscraper, Charles C. Ebbets, 1932
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