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Foto do escritorRevista Mar de Lá

Calos falantes


Raisa Gradowski

Curitiba-PR

Instagram @raigradowski


Se tem uma parte do meu corpo que vai sentir falta de ficar trancafiada em casa dia após dia são meus pés. Não que meus pés não gostem de passear, na verdade eles adoram! Adoram sentir a areia, a água do mar, saracotear por aí de bar em bar, chutar bola, correr e até arriscam uns passos de dança - quando o sangue circulando em suas veias apresenta um teor alcóolico que levaria a uma evidente reprovação no teste de bafômetro. Mas nada, nada, como o conforto e sensação de abrigo de um Crocs peluciado.

O Crocs, já modelo de algumas coleções passadas e mega macio – ou amaciado- que um dia foi preto, hoje está mais para cor encardida de pneu velho de bicicleta, dorme e acorda religiosamente no mesmo perímetro do carpet – no pé da cama, ao lado esquerdo, em frente à mesa de cabeceira. O dia e a noite, vezes até as madrugadas, passa trabalhando - cumprindo sua função e finalidade existencial de proteger e aquecer meus pés. Digo aquecer porque, mesmo nas semanas mais quentes, que a impressão é que o deserto do Saara se mudou para dentro do apartamento, mesmo nestes dias, meus pés estão gelados. Gelados como se colocados no freezer, na opção festa – congelamento ultra veloz. Gelados como depois de pisar descalça na grama branca de alguma cidadezinha canadense no inverno, com a neve se espalhando entre os dedos e deixando tudo roxo. Para esse modelo de pé, um Crocs forrado de pelinhos, ou uma pantufa quente de formato e tamanho de pé de urso, vem a calhar.

A vantagem do Crocs para a pantufa é que com um pé do tamanho do pé de urso temos menos mobilidade (acho que por isto que nosso pé é do tamanho que é). Então mesmo quase seduzida e entusiasmada por aquelas pantufas em formato de patas gigantes, de todas as cores existentes na paleta de tecidos – ainda que por certo que o fabricante saiba que não existem ursos rosas - há três anos, refleti sobre a questão da mobilidade e elegi o Crocs.

Quando decretaram a pandemia e imploraram pelo fique em casa, calcei o Crocs e senti a boa aquisição que tinha feito lá atrás. Em um período integral, durante todos os dias - que foram semanas e depois meses - tirando o momento, inicialmente tão temido, de buscar a comida ou as compras na portaria que finalmente amarrava um tênis nos pés, eu estava de Crocs. Só os tirava para deitar na cama, no sofá ou tomar banho. De resto, eu estava de Crocs – não sei como não desenvolvi um problema severo de chulé.

Só de pensar em ter que voltar a vestir meus pés com outra coisa que não seja o velho Crocs, meus dedos se debatem. Sapatos minimamente formais e maximamente confortáveis, dentro das possibilidades dessa categoria, para o dia a dia e em horário comercial, tênis para os outros momentos - mas às vezes aquele tênis mais cool, que pega no calcanhar e desde o momento da tomada da decisão de utilizá-lo já tem que encher o bolso de band-aid – nada como o bom e velho Crocs.

Até cogitei enfrentar a estética bizarra do Crocs e começar a sair com ele na rua, pelo menos nas ocasiões aceitáveis. Mas sabendo que, andando com ele pelas calçadas, sentiria um ventinho desagradável entre meus pés e seus pelinhos – logo desisti.

Meus pés vão sentir uma falta imensa do conforto do Crocs no dia a dia, do calcanhar que chegou a ficar molinho como pluma de tanto carinho que recebeu da pelúcia que forrava o calçado, mas, na hora de voltar para a rua, vão sofrer sorrindo. Afinal, a vida bem vivida deixa marcas.

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