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Foto do escritorRevista Mar de Lá

Room with a view


de Branca Lescher


Já faz algum tempo que eu me apaixonei pelo ipê-amarelo do meu jardim. Ele é meio diferente, o caule faz ondas, tem curvas, um bonsai gigante. Já foi ameaçado de morte algumas vezes porque o seu jeito torto já fez acreditarem que ele estava doente, só que não.


Ele é resistente. Está cada dia mais bonito e forte, mesmo com umas pragas que grudam nele de vez em quando. O jardineiro, Florisvaldo, tem ajudado e o jardim todo está lindo, cada dia mais bonito.


Com a pandemia tenho um costume novo. Abro a janela e fico admirando as cores do jardim, sem pressa. São verdes de todos os tons e a palavra “matizes” fica vindo à minha cabeça todas as manhãs. Por que dizer “matizes” se posso dizer cores? Ouvi pela primeira vez a palavra “matizes” da minha mãe quando minha filha Violeta nasceu e fui procurar o significado: “cada uma das diferentes gradações de uma cor”.


A natureza tem se vingado de nós. A exuberância dos verdes, das flores e a quantidade de pássaros têm me surpreendido. São Paulo ficou muito mais bonita, pós pandemia; é só passear por aí e observar as cores da cidade com menos poluição. É um paradoxo. A natureza respira e os homens não, morrem todos os dias por falta de ar.


Só fui ao cinema com a minha mãe duas vezes na vida. Uma, na infância, assistir “O Grande Ditador” do Charles Chaplin. Já adulta, “Room With a View”, um filme do inglês James Ivory com a Helene Bonham - Carter bem novinha. Quando o revejo me espanta a palidez das imagens mostrando como o tempo passou.


Mas, do mesmo jeito que a palavra “matizes” não sai da minha cabeça todas as manhãs, quando abro a janela do meu quarto e me sinto a pessoa mais sortuda, pois tenho um quarto com vista, me lembro do filme, da minha mãe, de ter ido com ela ao cinema.


Minha mãe não ia ao cinema, nem ao teatro, nem a shows, ela só trabalhava. Ir ao cinema com ela foi espetacular nas duas vezes. Na infância me senti muito importante de estar lá, sem os meus irmãos, na Avenida Paulista. Lembro perfeitamente até da roupa que eu usava. Adulta, eu e meu namorado, nos sentimos muito legais de proporcionar a ela aquele filme que nos havia arrebatado (fomos pela segunda vez, só para levá-la).


A pandemia nos fez tomar posse das nossas casas, o ipê-amarelo é meu amigo agora. Tenho dele fotos em todas as horas do dia, em todas as estações do ano.


Minha mãe não está mais por aqui. Gostaria de mostrar a vista do meu quarto pra ela, meu jardim, minha casa que é meu mundo agora. Que pena. Sinto saudades.

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